Você não é tão conservador como pensa

Kali
6 min readJun 23, 2024

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São Francisco Cortando o Cabelo de Clare de Assis

Que vivemos em época e lugar de liberalismo, isso é sabido por todos nós. Nascemos num mundo pós moderno, onde se vende narcisismo por amor próprio, assassinato por autocuidado, escravidão por liberdade. Nós, cristãos, sabemos também que essas coisas são falsas, pois temos a Verdade ao nosso lado nas Escrituras. Entretanto, ainda caímos mesmo que inconscientemente em algumas armadilhas e compramos algumas dessas peças falsas que o mundo nos oferece (o que talvez reflita a nossa necessidade de lermos e conhecermos mais a palavra de Deus).

Para maior compreensão, quero explicar um pouco sobre o quê me refiro quando falo de pós modernidade. Desde a revolução francesa (até mesmo um pouco antes, na verdade), tem se pregado que a razão é mais importante que a palavra de Deus, que o bem-estar individual é o fim último de todas as coisas e que por isso deve-se fazer o que bem quiser se for em nome da própria felicidade (o que muitos chamam de saúde mental e emocional), que o avançar é sempre melhor do que o regressar, que os antigos eram ignorantes e que hoje, sim, todos nós somos iluminados. Sim, nós, como cristãos, sabemos de muitas coisas e conseguimos vencer muitos obstáculos na vida debaixo do Sol graças ao nosso Senhor, mas é inevitável: somos filhos do nosso tempo. Nossa mundivisão definitivamente será, um hora ou outra, infectada com algum ideal liberal sem nem mesmo notarmos. A cultura transcende a razão. Não entendemos como, mas num piscar de olhos nos flagramos defendendo algo que foi reprovado por milênios.

Um dos principais problemas nisso tudo é um dos traços mais marcantes de várias civilizações, a saber, o domínio próprio, ter se perdido quase que completamente hoje. Quando somos criados numa cultura onde a felicidade pessoal é o bem mais importante e mais buscado e onde o autocontrole e sacrifício não são coisas necessárias (portanto, nunca meditadas), acabamos por exercer pouquíssimo dessa virtude. O que vejo em nossa conduta muitas vezes se assemelha àquele tipo de trabalhador que faz o mínimo para não ser demitido. A equipe precisa que ele faça 1 hora extra, mas 1 hora extra no trabalho é 1 hora a menos de lazer, então ele pergunta “vou ser demitido se não fizer”? e quando é respondido que não, ele decide ir pra casa, pois o bem estar dele é mais importante do que o bem comum. Desde que Deus criou o mundo a política (desde a esfera familiar até a da pólis) se fundamenta no bem comum, mas hoje em dia parece que isso se tornou coisa do passado mesmo. Só fazemos o mínimo para não cometermos pecado mortal, e seguimos sendo cristãos nota 7. Já que a salvação não é por obras, não há incentivo para ser excelente em santidade. Isso é engraçado porque os santos que tanto amamos são conhecidos e respeitados justamente porque se submeteram à coisas que não precisavam se submeter, mas o fizeram em prol de outrem. Exerceram o domínio próprio nos níveis mais altos e abriram mão da própria felicidade pelo bem comum. Todo mundo prega e contempla a abnegação de Rute, por exemplo, em contraste com Orfa. Quando as duas tiveram o direito de buscar a própria felicidade concedido por Noemi, Orfa o abraçou e foi. Rute ficou. Orfa não estava no seu direito? Sim, estava. Mas quem deu o nome para a narrativa e foi a pessoa mais agraciada na história foi Rute, que preferiu viver devota à sua sogra amarga e deprimida. Todos nós amamos Rute, que reflete o pensamento antigo de domínio próprio e sacrifício, mas todos nós agimos como Orfa, refletindo o mundo em que vivemos agora.

Existem muitas coisas que por milênios foram seguidas como essenciais aos cristãos e que hoje estão simplesmente sendo relativizadas. É dolorosamente comum ler cristãos dizendo que morar com a namorada não é pecado (só é pecado quando cai na relação pré-marital), que controle de natalidade é totalmente justo, mesmo sendo contra a lei natural (mas é mais fácil se encher de anticoncepcional do que se controlar e se relacionar só quando tiver como sustentar os filhos), que não deixam de beber álcool na frente de alguém só pra não escandalizar a pessoa, que não são obrigados a obedecer os pais se os pais não são sábios, que não pagam os impostos porque “imposto é roubo”, que abraçam tudo o que tiver estética e mensagem pagã e satânica e garantem que não se contaminam, que é arte pela arte. É comum demais ver mulheres cristãs vestindo roupas sensuais e postando fotos com olhares provocantes, mesmo que de forma sutil (já que não podem fazer de forma escancarada porque isso com certeza ia acabar com a reputação delas), é comum ver homens falando palavrões livremente como se tais palavras não fossem torpes e não fossem veneno pra alma, jovens lendo e consumindo mídia que não convém para o espírito e só alimentam as tentações. Tudo isso se esconde por detrás de inúmeras desculpas, tudo para não ter que exercer o domínio próprio. As desculpas vão desde “não sabia/não tive intenção/não acho que é assim que funciona” até explicações escolásticas para validar tais comportamentos. Isso porque estou descartando os pregadores da graça barata já que esses nem devem ser levados a sério ou sequer considerados.

O mais engraçado é que muitas vezes essas mesmas pessoas são as que se atraem tanto pelos ensinamentos dos influencers católicos que tanto pregam modéstia e virtudes. Mas no caso desses ouvintes, tudo parece entrar por um ouvido e sair pelo outro. Por um lado, devemos culpá-los pela falta de seriedade para com o autocontrole, mas por outro é importante lembrar que infelizmente as coisas são assim no mundo todo, por causa do ideal impregnado na cultura. Por isso é tão importante trazer de volta a pregação do domínio próprio. Não me refiro somente aos influencers de estoicismo, mas falo de cristianismo acima de tudo. Ao invés de darmos desculpas esfarrapadas e fazermo-nos de inocentes para continuar na nossa vida espiritual míngua, sejamos fortes e controlemos nossa carne. Já tivemos o suficiente de cristianismo nota 7. Vivamos a vida dos santos da igreja. Resistamos ao Diabo e ele fugirá de nós. Busquemos o maior sacrifício, o maior martírio, e em todas as coisas busquemos o bem do outro acima do nosso, mesmo que nos custe a felicidade. Lembremos que estamos aqui nessa terra para carregar a cruz, pois a verdadeira e única real felicidade que devemos almejar nos será dada no porvir, na eternidade. Tenhamos nosso Senhor Jesus Cristo como nosso ideal, nas palavras de S.Paulo:

3 Nada façais por contenda ou por vanglória, mas por humildade; cada um considere os outros superiores a si mesmo.

4 Não atente cada um para o que é propriamente seu, mas cada qual também para o que é dos outros.

5 De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus,

6 Que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus,

7 Mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens;

8 E, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz.

9 Por isso, também Deus o exaltou soberanamente, e lhe deu um nome que é sobre todo o nome;

10 Para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra,

11 E toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai.

12 De sorte que, meus amados, assim como sempre obedecestes, não só na minha presença, mas muito mais agora na minha ausência, assim também operai a vossa salvação com temor e tremor;

13 Porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade.

Filipenses 2:3–13

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Written by Kali

Amante da teologia luterana e esporadicamente dedicada a traduções.

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